domingo, 24 de março de 2024

NA SORVETERIA


 

Noutros tempos eu gostava de me amoitar num cantinho de boteco para ler, escrever ou simplesmente observar as pessoas que entram e saem – e também aquelas que nunca saem. Eu me divertia vendo um ébrio encostado no balcão com um copo de cachaça pela metade, mirando o líquido numa contemplação apaixonada e sem fim. O homem pega o copo, dá uma balançada na pinga, mas desiste de beber, deixando novamente o copo no balcão. Olha meio desconfiado para o lado, dá dois ou três passos em direção à porta, mas volta para seu cantinho e fica novamente namorando a pinguinha, que parece ser boa.   

Antigamente a cena com o manguacinha no boteco era mais pitoresca. Naquele tempo, o sujeito tinha a liberdade de acender o cigarro, mas para isso teria que usar uns três palitos de fósforo: um quebrava na primeira riscada; o outro palito caía e ele, por razões óbvias, não conseguia pegá-lo; com sorte, era bem-sucedido na terceira tentativa. E os copos... ah, preciso falar disso. A cachaça foi feita pra se servir no copo americano. Pinga, qualquer que seja ela – premiada, de litro ou garrafão, até mesmo do barril – tem que ser tomada em copo americano. Doutra forma, quem é bom cachaceiro jamais vai cumprir o “sagrado” ritual de beber um gole e dar aquela baita cuspida em seguida.

Numa tarde quente e úmida, eu estava numa cidadezinha do interior do Paraná quando resolvi dar uma escapadinha para um boteco bastante fuleiro, onde havia apenas três ou quatro mesinhas e nenhum cliente, que é do jeito que eu mais gosto. Pedi uma cerveja, fui para um canto e comecei a bebericar enquanto retomei a leitura de um livro. Comigo estava Dom Casmurro, que, na minha opinião, é a melhor obra de Machado de Assis. Enquanto o botequeiro, sem ter o que fazer, cochilava do outro lado do balcão, eu submergia na história de Bentinho e Capitu. Subitamente, chega um cliente e desperta o homem, dizendo quase num grito: “Seu Manduca, me dá uma cerveja!”.  Não poderia ser menor o meu susto, não por ele rasgar violentamente aquele benfazejo silêncio vespertino, mas porque naquele exato momento eu lia no romance a história de um personagem que, coincidentemente, tinha o nome de Manduca. Como pode?... Manduca ali e Manduca aqui?! Sim, o homem tinha esse apelido, que provavelmente tenha saído das páginas de Machado. Vai saber...

Agora os tempos são outros. Já não frequento boteco e muito raramente vou a barzinho. Meus anos foram passando, antes devagarinho e agora bem mais apressadinhos. Com a idade, me veio também algum juízo, de forma que meus espaços de lazer são mais escassos e bem selecionados – como uma sorveteria, por exemplo. É dela que eu gostaria de falar nesta crônica, mas fui atraído pelo boteco.

Bom... semana sim, semana não, dou-me ao luxo de ir a uma sorveteria.  Ali, leio e como picolés. Sim, eu mordo e mastigo picolés – não os chupo. Devoro sempre três: de abacaxi, limão, milho verde ou coco queimado. Enquanto vou sorvendo aquela delícia gelada, vou mergulhando nas páginas de um livro. Só que outro dia eu esqueci de levar esse companheiro e resolvi fazer umas continhas. Mas... atenção, matemáticos! Na demonstração da fórmula na foto que abre este texto, não há rigor algébrico. No entanto, fiquei satisfeito com o resultado. E com os picolés.

FILIPE


sexta-feira, 8 de março de 2024

ELA SE FOI VESTIDA DE BRANCO

 


Vivi com minha mãe os seus últimos momentos. Nunca, jamais pude imaginar que seria eu a pessoa a estar com ela em sua hora derradeira. Uma profusão de pensamentos me tonteava naquele começo de noite do dia 29 de fevereiro. Mamãe inerte, respirava silenciosamente com o oxigênio no fluxo máximo.

Eu tinha à disposição uma poltrona confortável, mas preferi uma cadeira de plástico, porque eu sabia que naquela noite eu não poderia cochilar. E numa cadeira menos confortável, provavelmente eu velaria o sono de minha mãe sem que dormitasse. Naquelas horas aflitas, eu me dividia entre a mamãe e o celular, de cuja telinha brotava um jorro interminável de mensagens, muitas não respondidas. Eram irmãos, parentes e amigos que queriam saber como ela estava. Eu não imaginava que aqueles seriam os instantes finais de minha mãe. Naqueles minutos, que depois eu saberia serem os últimos, enquanto eu observava a respiração e a temperatura da minha mãe, a minha irmã mais velha costurava o ‘vestido branco’ que mamãe, em palavras cifradas, encomendara um ano antes. As máquinas tinham pressa e trabalhavam freneticamente: no hospital, a de oxigênio soprando no limite máximo; na casa da minha irmã, a de costura na velocidade de um raio. E o vestido ficou pronto no momento em que mamãe partia. 

Na tarde do dia anterior, mamãe estava em casa e sua crise respiratória agudizava. Havia um cilindro de oxigênio prestes a se esvaziar. Procurado o fornecedor, primeiramente por minha irmã, esta não teve seu pedido atendido; depois fui eu a ligar para a empresa e experimentei a mesma frieza do funcionário, que, por razões absurdamente burocráticas, dificultava a entrega dos cilindros. A pressão no manômetro diminuía a olhos vistos e nós ficamos apavorados. Por fim, acabou o conteúdo e mamãe ficou “como um peixe fora d’água”. Desfalecida, sua saturação caiu a níveis absurdamente incompatíveis com a vida. 

Felizmente, o posto de saúde ofereceu um cilindro com a terça parte do conteúdo, mas suficiente para o socorro.  Mamãe já se recobrava quando chegou o doutor a pedido da mana. De longe, o médico já adiantou que o quadro era grave e que a enferma deveria seguir imediatamente para o atendimento intensivo. E assim foi feito. 

A ambulância estacionou no terreiro de casa naquela tarde de 28 de fevereiro, mamãe seguiu para o hospital e ficou até altas horas numa sala de emergência, porque não havia leitos vagos. Finalmente, devido a uma transferência, minha mãe conseguiu subir para a enfermaria, sendo acomodada num dos leitos do quarto 205. Há mais de um dia sem se alimentar e sem beber água, porque não tinha forças para engolir, mamãe tinha sede. Em casa, seus lábios eram molhados com um algodão embebido e nesse momento ela erguia as mãos, tentando agarrar uma mamadeira, que lhe era invisível. Na enfermaria, mamãe voltou a pedir água, o risco de engasgo era real, mas decidi arriscar.  Peguei um copo de plástico com uma pequena quantidade e levei até à sua boca. Ela sorveu sofregamente, amarrotando o copo e sem engasgar. Pediu mais, eu dei. Ela adormeceu feliz, porque matou a sede. Na manhã seguinte, às sete horas, eu disse: “Mãe, vamos tomar os comprimidos?...” Ela abriu os olhinhos e repetiu: “Comprimido?!” Dito isso já foi abrindo a boca como um filhote de passarinho. Eu pus um comprimido e dei um pouco de água. Ela engoliu e abriu a boca novamente. Pus o segundo comprimido e dei mais um pouco de água. Ela fez um movimento de deglutição, mas não fiquei certo de que tinha engolido, porque vi algo parecido com um comprimido na sua boca. E perguntei: “Engoliu?” Ela disse: “Pronto!” Aí percebi que o “comprimidinho branco” era um dentinho solitário que sempre me confundiu quando eu lhe dava os medicamentos. 

Terminei meu turno e deixei minha mãe aos cuidados de uma amiga da família. Antes, recomendei que mamãe devesse tomar alimentos oralmente, sem introdução de sonda e expliquei que ela estava deglutindo. Saí para descansar, porque eu voltaria à noite. No meio do dia fiquei sabendo que mamãe tinha piorado, e que estava sondada e prostrada. Um cardiologista havia sinalizado para o pior, mas eu tinha esperança. Quando cheguei ao hospital no começo daquela que seria a última noite, deparei com o quadro descrito no primeiro parágrafo. 

Mamãe estava mal e eu dizia à família que ela não retornaria com vida. Sentado naquela cadeira de plástico, eu me inclinava a cada minuto para ver se ela estava bem. Não dava para saber, porque seu quadro era de extrema prostração. Às nove da noite, as demais pacientes e acompanhantes pediram para apagar as luzes, e eu não pude mais ver com nitidez minha mãe. 

Tive fome. Eu tinha na mochila um lanche que seria para a noite anterior. Mas aquela noite, na qual mamãe se internou, foi bastante agitada. Ela estava impaciente e eu teria de segurar sua mão por duas razões: afagá-la e impedir que removesse o acesso. De repente, percebi na penumbra algo estranho. O acesso soltara e o soro juntamente com o sangue havia molhado três lençóis. Foi um horror! A enfermeira veio correndo, trocou tudo e, a custo, estancou o sangue. Pensei: mamãe, que está desidratada e sem se alimentar, agora sofreu uma perda substancial de sangue e, além disso, ficou sem o soro. Isso tudo na noite anterior ao ‘triste desfecho’. 

Volto para a noite seguinte, que seria a última. Passava das nove da noite, tive fome e comecei a comer o lanche. O lusco-fusco não me permitia observar a minha mãe, mas eu espiava assim mesmo e via que ela dormia tranquilamente. Terminado o lanche, fiz a checagem de sempre: apalpei suas mãos, seu pescoço, tentei ver sua respiração, e me pareceu que algo não estava normal. Fui ao postinho e procurei uma enfermeira: olha, acho que mamãe parou de respirar. A enfermeira chegou, checou, me pediu para pegar o estetoscópio com a colega dela, auscultou e, meio assustada, já ia saindo quando a interpelei: o que acha? Ela respondeu: é melhor chamar a médica para dar certeza, mas acho que ela se foi. 

Uma hora depois a médica veio, deu o veredito, me abraçou emocionada e saiu. Um minuto depois chegaram duas enfermeiras, que me abraçaram chorosas, me disseram palavras carinhosas sobre minha mãe e me pediram para sair. Elas iam trocar a mamãe e remover seu corpinho. 

Eu saí dali meio sem ter para onde ir e resolvi me sentar no sofá numa área de descanso. Ali, fui rememorando a vida de minha mãe desde a sua juventude. A natureza indócil, difícil, sendo dobrada pouco a pouco com a idade; a vida de sofrimento com a epilepsia: muitas quedas, inúmeras quedas; a vida de oração: muitas rezas; a parcimônia alimentar: comia pouco, só pedia água e nunca pediu comida; seu rico patrimônio: as sacolinhas de meias, blusas, toucas, todas dentro das gavetas de uma cômoda; as inúmeras internações: algumas por queimadura; a gratidão: mamãe sempre agradecendo e abençoando. Paro por aqui, mas prossigo adiante. 

Enquanto eu estava naquelas ruminações, tentando escapar da última cena que seria a remoção, um barulho lúgubre, muito conhecido de quem vara noites no hospital, me trouxe à realidade. Um porta-cadáver, que é uma espécie de maca de inox com rodas de aço, vinha pelo corredor e na minha direção. Eu quis sair dali, mas não havia tempo. Foi neste momento que me dei conta da realidade. Aquelas enfermeiras do quarto 205 vinham conduzindo o carrinho, e nele havia um lençol branco cobrindo o corpinho inchado de alguém com pequena estatura. 

Ainda naquela noite, procurei uma funerária e escolhi uma urna. E com o agente funerário, deixei uma pequena sacolinha plástica contendo o ‘vestido branco’ para minha mãe. 

FILIPE


terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

HISTÓRIAS COM O FREIZINHO



Hoje o Frei Gabriel está completando ‘cinquenta e um anos’. Há pouco tempo, por ocasião de um retiro do qual ele participava, familiares e amigos fomos convidados a escrever um pequeno depoimento sobre a vida desse amado frade. Não de forma explicitamente autorizada, mas consentida pelo Freizinho, aqui deixo registrado o meu modesto texto.

 

São muitas as histórias que poderiam ser contadas sobre o Frei Gabriel, algumas bastante pitorescas, mas farei apenas um breve relato de algo que me parece suficiente para descrevê-lo.

Certa vez o Frei passou uns dias de férias comigo, quando eu morava num pequeno cômodo nos fundos da casa de um tio, em Mauá.  Jovenzinho ainda, pouco mais do que um menino, o freizinho parecia homem-feito dentro daquela “batina”. Conversa vai, conversa vem, resolvemos dar uma volta na cidade e depois pegamos um trem com destino a São Paulo quando ele me disse: “Eu gosto de andar com você porque eu fico mais à vontade para usar este meu hábito. Não é sempre assim, sabia?... Há quem se incomode com isso!” Fiquei lisonjeado, surpreso até, porque eu não sou o mais simpático dos ‘Moura Lima’ – pelo menos é o que dizem.

Naquele trem, o Frei me deu uma aula sobre o Oriente Médio. Na verdade, eu só queria saber por que diabos palestinos cismavam de jogar pedras em soldados israelenses. Mas ele resolveu fazer uma panorâmica e começou contando a história do povo hebreu desde seus primórdios. Ousei interromper, pedindo que ele apenas respondesse à minha pergunta. Mas pra quê... O homem ficou nervoso e me deu uma enquadrada: “Bom, se você quer saber o porquê dessa briga, então tenha calma, porque esta é a minha maneira de explicar. Preciso partir do começo pra chegar ao final”.

E foi exatamente ali, naquele trem de passageiros entre Mauá e Santo André, que me dei conta de que o nosso Biezim havia ‘crescido em estatura e sabedoria’— e brabeza!.

Na verdade, daquele hábito, que é uma espécie de ‘batina franciscana’ usada pelos religiosos, sempre gostei. Tanto é que, certa feita, estando muitos de nós de férias na casa dos pais, aprontei uma traquinagem. De manhã, enquanto o Frei dormia, catei o seu hábito, que estava pendurado na porta do quarto, vesti e saí desfilando pela casa. Todos me sorriam. Uma irmã, pensando que eu fosse o religioso, me abraçou e foi logo me oferecendo café. Até mamãe se alegrou comigo e me lascou um beijo na cacunda. Nisso, eu comecei a rir e a farsa logo se desfez, deixando a irmã tão desapontada, que ela talvez quisesse me “desabraçar”; e a mamãe também parecia querer me “desbeijar”.

E foi assim que eu pude experimentar a singular alegria de “ser o Frei Gabriel”, ainda que por apenas uns poucos minutos, mas tempo suficiente pra saber que a vida dele, embora sacrificada, é bastante recompensada por afagos, e uma delícia de ser vivida!

FILIPE


sábado, 17 de fevereiro de 2024

CIDO

 


Eu precisava falar desse senhor aí da foto, porque ele é uma pessoa muito especial.

Estava eu com meus cães fazendo a caminhada de rotina quando vi uma movimentação numa rua acima da minha casa. Havia na calçada uma caçamba cheia de entulhos e, curioso, estiquei os olhos para dentro da garagem quando vi o Cido, que enchia latas de concreto enquanto seu filho manobrava a betoneira.

Ele não sabe que foi fotografado por mim; se soubesse, com certeza não iria gostar.  E, claro que ele também não sabe que estou escrevendo isto aqui. Se souber, talvez fique bravo, e o melhor mesmo é guardar segredo.

Trabalhei com o Cido por uns três anos. Foi ele quem fez a casa onde moro e fez também outra casa cuja construção acompanhei da fundação ao acabamento. Nesses anos de convivência quase diária, de planejamento e ajustes, nunca tive qualquer aborrecimento com o Cido. Claro que isso não diz muita coisa, porque eu posso tê-lo aborrecido. Vai saber...


Durante meses, anos até, eu temia começar a obra que seria esta casa onde moro. Tenho boas razões para isso e há quem concorde comigo. Há muitos pedreiros bons, honestos e responsáveis. Contudo, muitas são as histórias envolvendo obras inacabadas devido a desacertos. Felizmente encontrei o Cido, e com ele as coisas fluíram. Você, raro leitor, se é que o tenho por aqui, vai me entender.

Sabe aquele pedreiro que não pede dinheiro adiantado e só aceita pagamento de acordo com a evolução da obra? Pois esse é o Cido. Sabe aquele pedreiro que comparece ao serviço todos os dias, de segunda a sexta, entrando britanicamente às sete da manhã e saindo às quatro da tarde? Esse também é o Cido. E aquele pedreiro que está sempre bem-humorado, que não é falastrão nem gabola e não explora quem o contrata? Então, esse ainda é o Cido!

Tem mais. O Cido pega um serviço por completo, mas ele sempre abre a possibilidade de que outros “com mais prática”, segundo ele, possa fazer a parte de eletricidade, hidráulica, carpintaria etc. “Eu faço, mas se quiser chamar outro...”, assim ele diz e ainda indica o profissional. Gente, isso é raro! Estou velho, já trabalhei em construção civil e lidei com uma gama desses profissionais, mas o Cido é realmente diferenciado.

Outra particularidade do Cido: ele só trabalha de chinelos. Nunca se viu o Cido calçado de botinas, tênis ou botas durante seu labor. Ele prefere chinelas havaianas, porque “deixa os pés mais leves e livres”. Com elas ele sobe em andaimes, pisa no barro e nos entulhos, desvia de pregos, tropeça... Mas não se machuca! Só Deus mesmo pra proteger o Cido!!

Ah, tem uma história que o Cido me contou e acho que vale a pena registrar. Certa vez, ele estava num andaime, daqueles feitos com eucaliptos, em que se usa uma escada para subir ou descer. De repente, estando Cido lá em cima rebocando a parede, veio uma ventania danada. O andaime vergava e o Cido se segurava como podia. Nisto, a escada, que não estava amarrada, deslizou e caiu, deixando o Cido preso lá nas alturas. A rua era deserta, quase ninguém passava por lá, e a noite vinha.  Por sorte, depois de uns gritos, alguém veio socorrê-lo.

Bom, esse caboclo aí, trabalhador, com jeitão amineirado e meio cismado, é o Cido. O Cido é o cara!!!

FILIPE

sábado, 3 de fevereiro de 2024

O MISTERIOSO VISITANTE NOTURNO

 


Em todas as manhãs eu encontrava algum vestígio da sua visita. Ora havia manga mordida e abandonada, ora era a semente de uma manga agora inteiramente devorada. Dia sim outro também, estava embaixo da mesa os sobejos do ‘visitante noturno’, que eu nunca soube quem era. Como a refeição desse ‘carinha’ era sempre ali, decidi facilitar-lhe a vida e passei a escolher as melhores frutas e deixá-las numa bandeja de isopor para seu conforto. E assim ele ficou satisfeito e eu também. Então, todas as tardes eu reabastecia o pratinho e mais à noite ele vinha para a ceia.

 

Como a safra da manga estava no fim e pouquíssimas frutas poderiam ainda ser apanhadas, eu já me preocupava com a ‘segurança alimentar’ daquela criatura. Então, decidi variar um pouco, pondo uma goiaba e uma manga. Mas, no dia seguinte, a manga havia sumido enquanto a goiaba permanecera intocada. A exigência desse meu ‘cliente’ fez aumentar a minha preocupação. Embora eu tivesse muitas mangas na geladeira, elas seriam insuficientes para atravessar a entressafra, que se estende por muitos meses.

 

A minha “patroa”, sabendo desse caso, desconfiou de ratos – eu pensava em gambás. Eu nunca soube que ratos pudessem se alimentar de mangas ou de outra fruta, mas sei que a preferência desses roedores é pelos cereais. Gambás, sim, estes, além de carnívoros, são frugívoros vorazes. “Não, não pode ser rato. É gambá ou ouriço”, intuí. 

 

Para melhor elucidação, resolvi armar uma arapuca, utilizando uma bacia, conforme se vê na foto lá em cima. Peguei duas mangas e as trespassei por um arame. Depois, com um pauzinho, sustentei a bacia e amarrei nesse suporte um barbante, ligando-o ao arame. Pensei: assim que o danadinho pegar uma das mangas, o arame vai puxar o barbante, que vai arrastar o pauzinho, e a bacia prenderá o serzinho misterioso. No dia seguinte, cheguei curioso pra ver a surpresa, mas que nada! A bacia continuava armada e as frutas incólumes.

 

Não, não terá sido gambá o visitante noturno, porque gambás são confiados demais para perceber que uma armadilha poderia surpreendê-los. Que bicho poderia ser? Claro que um rato! Ratos são espertos, muito espertos. Não à toa que, na tarde anterior a esse experimento, enquanto eu fazia “uns trem” na minha ‘oficina de carapina’, apareceram-me dois olhos assustados que, mal me avistaram, recuaram apressados e subiram velozmente o muro, desaparecendo num átimo.

 

Eu jamais mataria aquela ratazana.  Assim como não (nunca mais!) matarei cobras nem animal algum, exceto pernilongos e escorpiões com os quais não há convivência possível. Contudo, não estou disposto a alimentar ratos e nem os quero por perto. Por isso, a partir de então, nada de bandeja com frutinhas para a ceia de quem quer que seja o ‘ilustre visitante noturno’, e muito menos para esses “dentucinhos”. Daqui pra frente, a regra é: ‘mais racionalidade e menos romantismo’.

 

FILIPE

sábado, 20 de janeiro de 2024

O COZINHEIRO PORCO

 


Confesso que me esforcei, mas acho que não consegui fazer direito. A minha cozinha estava toda enfumaçada, com picumãs descendo sobre minha cabeça e as paredes bem encardidas. Depois de tanto procrastinar, meti a mão na tinta e dei uma boa caprichada. Mas o fogão continua fumê, esperando por um tio que prometeu usar até uma cavadeira para, segundo ele, remover a crosta de carvão. Maldade dele, porque o meu fogão não é mais fumarento e nem está tão sujo assim.

O meu objetivo aqui nem seria falar do fogão, que está feliz desse jeito meio sujão, mas o assunto seria as paredes, que foram pintadas após anos me implorando por um banho de tinta branca. Sobre o fogão, acho melhor deixá-lo assim mesmo, porque descobri que ‘cozinheiro bom é cozinheiro porco’ e, dessa forma, a cozinha pode ficar ‘mais ou menos, que já tá bom demais.

Você que me lê observe uma coisa. Se um dia for comer na casa de um amigo ou num restaurante e achar a comida deliciosa, é melhor não bisbilhotar a cozinha, porque, com raríssimas exceções, o cozinheiro é um porcão. Há um ditado com alguma lógica, mas pra lá de preconceituoso, que diz: “Quer boa comida, siga os gordos!”. Se é verdade que apenas os gordinhos conhecem o caminho da ‘boa mesa’, não posso afirmar, mas posso afiançar que alguns “porquinhos” são bons quituteiros – o que não exclui a hipótese de que haja “porcões” fazendo comidas horríveis por aí.

Contudo, a recíproca para essa minha tese não é verdadeira. Se “porquinhos” fazem comida boa, não significa que toda comida boa seja exclusividade de “porquinhos”. Pois sabemos por experiência e vivência que há muita gente limpinha, sobretudo mulheres, fazendo comida maravilhosa por aqui, por aí, por lá e acolá.

Quando falo de ‘cozinheiro porco’, eu me refiro apenas e tão somente à lida dele com pratos e panelas e também da falta de zelo com os ingredientes que está usando. Nem ouso falar daqueles que deixam a cozinha para ir ao banheiro e voltam de lá com as “mãos sequinhas”, se é que me entendem.

O ‘cozinheiro porco’ costuma usar muitos panos de prato, que pega limpinhos na gaveta, e os deixa espalhados pelas pias e mesas. Volta e meia ele pega um e põe no ombro e este faz “milagres” na sua mão. Com esse pano ele pega panelas quentes, enxuga conchas e escumadeiras, passa sobre a barra do fogão e, de vez em quando, remove o suor da testa.

A cozinha, todo sabemos, é a arena do cozinheiro, e ali ele é um gladiador bem nutrido e bem armado, que, com boas facas, resolve qualquer parada, desde a desossa de um pernil até a expulsão de um intruso.

E, assim, encerro a crônica que teria como mote a pintura da minha cozinha, mas me ative ao fogão e seu cozinheiro, que talvez seja eu mesmo.

FILIPE


sábado, 6 de janeiro de 2024

MUÇURANA

 


Numa tarde úmida e quente eu andava com meus cães pela redondeza quando, a certa altura, avistei uma pequena criatura atravessando a rua apressadamente. Era uma cobrinha que, abrasada pelo asfalto fumegante, buscava asilo junto ao matagal que margeia a rua. Os cães, curiosamente, não despertaram interesse por aquele réptil, mas eu, sim, e fiz a foto que abre esta crônica. 

Ao retornar do passeio, pesquisei na internet e descobri que aquela “menina” é a ‘muçurana’ – uma cobra do bem que, além de não ser peçonhenta, devora todas as suas “primas”, venenosas ou não, exceto a temível coral-verdadeira. 

O dia seguinte começou com um mormaço. Eu já havia encerrado o chimarrão, terminado as leituras e preces matinais e retomava meu trabalho com sucatas de madeira – mania que adquiri nesta minha incipiente velhice. 

Nota: A descrição a seguir não se recomenda a almas mais sensíveis, porque há nela cenas de desmedida violência. 

E naquela manhã plácida e morna, enquanto eu media, riscava e cortava pedaços de tábua, uma cobra passava a poucos palmos de meus pés. Ela deslizava lentamente sobre o gramado, depois alcançou uma área de ladrilho e seguia seu curso. Olhei do lado, procurando um pau para matá-la, mas não encontrei nada adequado. Como ela parecia bastante tranquila, pude me afastar dali para procurar uma “arma” mais eficaz e achei um rodo velho, que me foi de boa serventia. Quebrei aquele rodo, deixando uma parte para servir de gancho e fui à luta com o bicho. 

Aproximei-me sorrateiro e dei uma pancada, acertando-a de raspão, fazendo com que ela se apressasse. Bati outra vez, e desta vez rompi seu abdome, mas ela não desistiu da fuga, arrastando as vísceras em seu trajeto sinuoso. Eu não tinha alternativa porque aquela era uma cobra-coral e possivelmente peçonhenta. A experiência me ensinou que, mesmo confiando no meu Anjo da Guarda, devo ser bastante cauteloso com as serpentes. A prova disso é meu pai, ele um homem de muitas rezas, que certa vez teve de ir ao hospital por ter sido “ofendido” por uma jararaca. 

Como apenas especialistas são capazes de distinguir uma falsa-coral de uma coral-verdadeira, eu,  não sendo especialista em nada, teria que dar cabo daquela desinfeliz. E assim, bato daqui, ela foge para ali; puxo pra cá, ela foge pra lá e, de bordoada em bordoada, continuei a luta. Mas a poucos centímetros à frente dessa arena, há uma casinha com um motor e foi ali que ela entrou e se enroscou. Abri a portinhola e vi uma pequena parte de seu corpo embaixo do motor. Dei uma cutucada e ela se movimentou, levantando a cabeça a uns bons centímetros do solo. Agora ficou fácil pra mim. Com o gancho do que restara do rodo, consegui puxá-la para um lugar seguro e dei fim à sua agonia. 

Confesso minha tristeza por tudo aquilo que fiz. Sempre que posso, evito matar bichinhos. Até as moscas, que tanto me perturbam, tento afugentar pacificamente, e só uso a raquete elétrica quando sou desafiado. Mas com as corais não se brinca porque elas são perigosíssimas e têm poucos predadores, talvez apenas o gambá e a seriema. Como os gambás são implacavelmente mortos por gente ignorante e as seriemas costumam virar guisado por caçadores inescrupulosos, as cobras-corais estão aumentando. 

Numa noite dessas, depois da triste saga da coral, encontrei uma sua ‘parenta’ (talvez muçurana) à porta da cozinha. Agora deu muito certo para essa, que escapou do ‘cabo do rodo’ assim que notou a minha presença. Deu certo para mim também, que, embora preocupado, fui dormir feliz. 

FILIPE